"O Silêncio Acolhedor", da Dra.Vaqueira

Decidimos compartilhar uma bela história, um pouco da experiência da Dra. Vaqueira irmã gêmea da Isabel Sandes em um de seus plantões
Por: Ana Clara Pontes, Isabel Sandes

Aguardando ansiosos para o lançamento do livro: Resenha do Riso, que contará com diversos relatos e experiências dos nossos palhaços doutores nos plantões de sábado, decidimos compartilhar uma bela história, um pouco da experiência da Dra. Vaqueira irmã gêmea da Isabel Sandes em um de seus plantões, que em apenas uma tarde trouxe uma bela lição sobre o amor materno e as diversas maneiras de se comunicar além das palavras. Ela começará a seguir. :)


Mais um sábado ensolarado em Coité do Nóia, meus irmãos e eu começamos a nos preparar para pegar o trem em destino a nossa estação infantil preferida e dar início ao nosso plantão pontualmente às 14h. Quem dita a nossa rotina são sempre os baixinhos e te garanto que não teria como ser melhor, há sempre algo novo a aprender, seja uma música, um gesto, um passinho de dança, palavras, desenhos e até receitinhas. 


Enfim, chegou o momento de subirmos as escadas e conhecer as crianças, nos apresentamos e fomos questionando o que gostariam de fazer. Esse momento coletivo sempre é importante, e recheado de boas risadas. Meu irmão, Dr. Nimbus, sempre nos salva quando começam a falar de desenhos de anime, e temos longas conversas com direito a retrospectivas das cenas que ocorreu em algum episódio do desenho, seja desenhando ou encenando. 


Você consegue imaginar um “Movimento de Fusão” entre uma criança de 8 anos, com aproximadamente 1,80 e outra de 4 anos com menos de 1,30 no meio da enfermaria? É, eu também não conseguia imaginar até vivenciar isso neste dia, na verdade, foi muito lindo e tive que registrar. O encontro entre os dedos não ficou tão perfeito, mas foi o suficiente para surgirem dois Super Sayajins incríveis que me tiraram bons sorrisos.

Logo, o cenário de tristeza, angústia e cansaço foi deixando a cena. Então pensei: Todos nós somos Super Sayajins e o nosso principal adversário é a desconstrução de um ambiente hospitalar hostil e sempre vencemos!


A única criança que estava dormindo quando chegamos, quase não se mexia, fiquei curiosa para saber dele, quem era sua mãe, idade, rosto, o tom da voz e qualquer informação que me fizesse sentir próxima a essa criança. Entre uma música e outra, uma mãe se aproximou do leito dele, então fui me aproximando e ela logo disse olhando para mim “Não sei que milagre ele não acordou” e respondi com o rosto surpreso e sorrindo “Eu ia falar isso agora”.


Nossa longa conversa começou assim, inesperada, a minha resposta meio sem graça permitiu que ela me dissesse as coisas que eu gostaria de saber, mas ela não contou o que eu esperava, na verdade, ela me disse algo que eu nunca teria perguntado: “Estão fechando o diagnóstico dele de autismo...” Travei por alguns milésimos de segundos. Não deu tempo de falar algo sobre isso porque ela logo completou: “mas ele é perfeito. Ele é lindo e perfeito”. 


Essa mãe com uma frase desconstruiu toda e qualquer imagem negativa que a sociedade impõe. Ouvir aquilo foi de arrepiar. Conversamos por alguns minutos e logo uma outra mãe a chamou para mostrar uma foto, saí e quando voltei e olhei para minha esquerda, lá estava o dorminhoco nos braços da mãe e pensei “Graças a Deus acordou”. Fui chegando e a mãe dele estava apontando para mim, dizendo que eu estava levando diversão.


Cheguei, me apresentei e perguntei olhando para ele: Posso me divertir aqui com você? Ele nem piscou, apenas ficou me observando, da cabeça aos pés, olhou para meu chapéu, nariz, meu cavalo no jaleco e apontou, perguntei se ele queria pegar no nariz, o instinto de toda criança é apertar com força, mas com ele foi diferente, ele apenas encostou o dedo indicador no nariz, em algumas bolinhas que ficam no cavalo e desviou o olhar, então mostrei o que tinha levado, as cores, os desenhos, porém, ele não esboçou nenhuma reação e olhou para a mãe, ficaram se olhando como se estivessem conversando, em seguida ela olhou para mim e disse: pode ficar.


Não entendi o que tinha acontecido ali na hora, mas hoje entendo que eles dois tem uma conexão que vai além da nossa compreensão. Então, depois que ela disse isso coloquei a prancheta próximo a perna dele e o chamei para testarmos algumas canetinhas.


Mostrei como se tira e coloca a tampinha e entreguei a ele a cor azul, ele pegou a prancheta, colocou no colo, fez um risco de uma ponta a outra da folha, logo olhou para mim como se dissesse “Essa funciona”, e assim ele fez com todas as outras canetinhas. Ele não fez nenhuma pergunta sobre mim, mas sempre que eu falava algo, ele prestava atenção, pois ele parava de riscar, mesmo que não olhasse para mim.


Me toquei que aquela também era a nossa própria forma de comunicação: o silêncio, a observação e o toque. Percebi que ele queria que eu estivesse ali e eu precisava estar lá, por nós: pela mãe, por ele e por mim. Quem disse que precisamos da comunicação verbal para sabermos o que o outro precisa ou sente? Quem disse que o silêncio também não pode ser confortante, terapêutico e acolhedor? Ele pode ser isso e muito mais e devemos escutá-lo.


Em alguns momentos a mãe ficava entrando e saindo da enfermaria, ela sempre voltava para ver como estávamos e começou a me observar, mas depois percebi que ela estava observando os dois e logo disse: “Você vai ser pediatra, não é?” e completou: "Engraçado... achei que ele ia querer ficar com um menino... aqui ele só brinca com os meninos…” Não soube o que dizer, só sorri e até agora eu não sei o que poderia ter respondido.


Ela fazia parte da trilha sonora da enfermaria, sempre cantarolando “Sr. Sirigueijo é o meu amor”, perguntei para ela o motivo de chamá-lo assim, ela respondeu que não sabia, apenas chamava pois achava carinhoso e que todos ali passaram a chamá-lo assim, até as enfermeiras. A partir desse dia, eu desconstruí a imagem que tinha do Sr. Sirigueijo: rabugento e ganancioso do desenho do Bob Esponja. Agora sempre lembro do Sr. Sirigueijo do Dayse Breda, que com sua pureza, inocência e paz também se tornou o meu amor.


Enquanto estávamos rabiscando, perdi a noção da hora, aqueles 60 minutos de puro silêncio que eu tive com ele foram únicos. Mas o Dr. Autocontrole foi avisar que já precisávamos recolher algumas coisas, então disse a ele que meu trem iria passar e que meus irmãos já estavam me esperando, ele delicadamente juntou todos as canetinhas e colocou no bolso do meu jaleco, retirei as folhas da prancheta e coloquei próximo a ele.


Antes de ir, a mãe dele me agradeceu por ter permanecido lá mesmo que ele mal tivesse olhado para mim enquanto pintávamos e eu disse “Não se preocupe, hoje foi incrível.” e perguntei a ele “Não foi, Sr. Sirigueijo?” E finalmente uma expressão, um sorriso de canto de boca e em seguida acenou para mim discretamente, só os dedinhos no canto da perna me dando tchau e finalmente a sensação de dever cumprido, mais uma criança desconectada do mundo hospitalar, mais um Sorriso.


E, oficialmente, não sei continuar sem essa sensação todos os sábados, sem esse amor e essa paz que me desconecta do mundo, sem ter uma palavra ou frase tão inocente e justa que são ditas pelas crianças para mudar minha perspectiva de ver as coisas. Não sei continuar sem o Sorriso de Plantão.