Relatos de um Palhaço: Dr. Letrinha Azogado

Relatos de um Palhaço: Dr. Letrinha Azogado
Dr. Letrinha Azogado está em seu primeiro ano como integrante do projeto e atua na Equipe HGE.

Olá pessoal! Como vocês vão? Estão preparados pra mais um "Relatos de Um Palhaço"? Hoje este encargo ficou com o nosso Dr. Letrinha Azogado que vai nos mostrar que vale a pena insistir em uma criança que as vezes não te dá bola. Então, sem mais delongas, eis aqui o nosso relato de hoje.

 

"Sobre bolhas de sabão"

 

     O que será que as bolhas de sabão, no contexto de um ambiente de hospital, podem representar para as crianças e para os parentes que as acompanham? Leveza? Voo desordenado? Uma sensação de efemeridade do momento quando vemos a bolha nascer, se movimentar, e estourar em poucos segundos? É uma simplicidade dentro de uma complexidade. A tarde do dia 6 de junho nas enfermarias pediátricas do Hospital Geral do Estado (HGE) foi recheada de lições sobre como alimentar a alegria através de situações que, para nós (muitas vezes automatizados com o sufoco das rotinas de trabalho e de estudo), poderiam até passar despercebidas. Essa conversa puxa alguns dedos de prosa sobre a vivência do “plantonear”.

 

     Ao reencontrar M. na enfermaria 4, deparei-me com um novo desafio: construir, em poucas horas, uma relação de amizade com aquela garotinha que não podia sair da cama por conta de sua recente cirurgia. Da última vez que nos vimos, suei muito meu nariz para conseguir que ela falasse seu nome e abrisse, o mínimo possível, os lábios para um sorriso. Naquele plantão, sai com uma sensação de que poderia ter feito mais por M., pois ela falou muito pouco e não dizia o seu nome para quase ninguém. Foi um esforço de muitos minutos para que ela conseguisse falar.

 

     Dessa vez, assim que entrei na enfermaria na qual ela estava, e perguntei o seu nome, ela disse, tímida e alegre: M. S. L.. Naquele instante, fui invadido por uma sensação difícil de descrever: o elo anteriormente construído a duras penas continuava existindo ali, de forma que a garotinha disse seu nome (completo) sem a necessidade de muitas insistências. Nesse momento, já que avançamos uma etapa, pensei em fazer algo diferente do plantão anterior para divertir M.: foi então que as bolhas de sabão vieram. M. olhava encantada para o voo daquelas formas breves que desapareciam no ar. Todos os seus sorrisos, ou outras reações que demostravam alegria, vinham do olhar de ver as bolhas sobrevoando a sua cama, tocando o seu rosto. Eis então que aparece outro fã da brincadeira: W.

 

     A responsável por levar as bolhas de sabão para W. foi a Drª. Magia que, portando dos poderes de sua palhaça doutora, criou bolhas de amor, de amizade, de alegria, que deveriam ser “pagas” pelo garoto através de sorrisos. E não é que esse acordo deu certo? Foi assim que ele, tal como M., entrou para o rol das crianças que poderiam ficar a tarde toda vendo as bolhas de sabão sobrevoarem as suas camas como se cada uma tivesse um brilho diferente, um movimento singular. Comecei a me dividir entre esses dois leitos, pois cada vez que eu soprava as bolhas de sabão em direção a uma criança, a outra me lançava um olhar de pedido de “envio” dessa magia tão belamente instantânea. M. não pedia com palavras que a brincadeira recomeçasse: ela soprava e soprava, como se dissesse que precisava que eu desse continuidade àquele ato. Na hora da despedida, eu consegui um beijo no meu nariz, que me atravessou por inteiro, causando também um efeito de surpresa nas outras mães daquela enfermaria, posto que elas sabiam o quanto M. não era afeita a esse tipo de gesto. Eu não poderia pensar em um presente mais grandioso, singelo e sincero quanto este.

 

     Por fim, tenho que mencionar P. (o nome faz jus à criança, uma verdadeira joia), bebê de um ano com hidrocefalia. No colo do pai, seus olhos remexiam acelerados ao ver as bolhas de sabão voando. Eu segurava sempre uma bolha, aproximando-a perto de P. para notar a sua reação: ela encolhia a mão e colocava só o dedo indicador para frente, com o rosto se entregando ao sorrir paulatinamente para estourar a bola. Mais uma recepção diferente provocada pela mesma e simples brincadeira.

 

     O que, de modo geral, é preciso para que uma bolha de sabão exista? Alguém que se disponha a dar um pouco do seu ar. Só isso. Esse sopro, aparentemente, se transforma em algo que leva, com delicadeza, suspiros de vida para quem contempla o voo do encontro da água com o sabão. Tão logo uma bolha estoura, surge outra para anunciar que há mais vida nesse “mover-se” (sem rumo) no ar chegando, renovando o estado de espírito das crianças e de seus acompanhantes. Uma bolha de sabão não é somente uma bolha de sabão: há uma conectividade misteriosa entre o “soprante” e o “olhante” dessa efêmera forma de dança que se suspende no ar, que nos suspende de nós mesmos.

 

Dr. Letrinha Azogado

 

 

Sorriso de Plantão: Sentimento que aquece nossos corações heart