Relatos de um Palhaço: Dr. Letrinha Azogado II

Relatos de um Palhaço: Dr. Letrinha Azogado II
Dr. Letrinha Azogado está em seu primeiro ano como integrante do projeto e atua na Equipe HGE.

Oi gente!!!
Como vocês estão?
Hoje, como de costume em toda Quarta, é dia de lermos o tão aguardado "Relatos de um Palhaço" que traz novamente a escrita belíssima do nosso Dr. Letrinha Azogado, nos contando sobre suas experiências com diferentes crianças, novas descobertas e reencontros que acabaram se tornando novamente em um primeiro encontro.
Fique agora com mais uma história para refletir e se emocionar:

 

 

“Reencontros”

 

Mas te vejo e sinto o brilho desse olhar
Que me acalma e me traz força pra encarar (tudo).
(Cidadão quem)

 

     Sábado. 20 de junho. Pegar o trem do Sorriso de Plantão com um destino diferente do habitual, do hospital a qual você faz parte, por exemplo, é mais uma experiência de caráter bem singular que a vida de palhaço doutor nos proporciona. A primeira festa de São João do Hospital Daisy Brêda com a turma do Sorriso de Plantão me deu a oportunidade de conhecer o lado faceiro de pessoas que até então eu somente tinha visto respirar com um nariz comum. Aos poucos, embalados pela folia do balancê junino, pela travessia do túnel, do pular da fogueira e do casamento matuto, comecei a criar e a encontrar um compasso de integração com os meus irmãos palhaços doutores. As energias vão se combinando e, em pouco tempo, já estávamos completando a canção que o outro inicia e que, no decorrer da melodia, descobre que só sabia o refrão. E sim, plantonear às vezes nos mostra que não sabemos muitas músicas que achávamos que sabíamos. Quem sempre?

 

     Durante essa tarde, fui fisgado por uma criança que me conquistou logo no primeiro olhar: J., paralisado cerebral, oito anos. Ele estava no último leito da enfermaria em sua cadeira de rodas. Não se expressava verbalmente ainda. Todavia, os seus movimentos corporais, principalmente aqueles realizados com os pés, e os seus sorrisos, traduziam as palavras que não se formavam pela fala. Ao nosso lado, Dr. Mensão e Dra. Azúri estavam cantando e brincando com um grupo de crianças. J., toda vez que ouvia o “barulho” deles, se remexia e vibrava bastante. Pedi aos palhaços doutores que viessem para o nosso lado. Fizemos uma roda de dança e música ao redor de J.: a sensação que tínhamos é que ele estava dançando conosco através dos olhares rápidos, das mãos e dos pés inquietos. Naquele momento, vi a variabilidade das formas de expressão que ele possuía. A nossa banda improvisada de forró tocou bastante para J. A hora de ir embora foi meio difícil, pois aquele afeto do rosto de J. ficara carimbado em mim. Eis que veio o trem e fui levado pelo piui piui com os meus outros irmãos.

 

     Sábado. Dia 27 de junho. Festa de São João do Hospital Geral do Estado, meu grupo regular. Dessa vez, o trem me levou novamente para o inesperado, para o reencontro: J. teve um leve declínio de seu estado de saúde e foi transferido para o HGE. Quando entrei na enfermaria em que ele se encontrava e o vi, gritei alto o seu nome. Posso estar enganado, mas a luz que saiu do seu olhar, aquela luz que bateu em mim, foi uma espécie de reconhecimento, como se ele estivesse contente que o destino tivesse cruzado nossos caminhos novamente. Eu, apesar da tristeza, é claro, de ver que ele continuava internado (e em outro hospital), não consegui disfarçar o impacto feliz de revê-lo. Esse instante praticamente traduziu o trecho da letra da canção que iniciou esse relato, pois o brilho daquele olhar revigorou a força da minha presença ali.

 

     Tal como o sábado anterior, não consegui sair de perto de J. Coloquei-o perto de outras crianças de forma que ele pudesse escutar o som das brincadeiras. Acompanhado por Drª. Coelhita e Drª. Mimosa, dançamos e cantamos ao redor dele várias músicas juninas. Novamente, o garoto reagia através da gestualidade às nossas brincadeiras. Lembrei que, no nosso primeiro encontro, J. pegou o crachá de visitante da tia com o pé esquerdo e não soltou de jeito algum e, em seguida, passava esse objeto de um pé a outro num piscar de olhos. Talvez, essa fosse a sua forma de dizer que desejava que a visita de sua tia não acabasse tão cedo. Pensando nisso, peguei uma bola e passei algumas vezes pelos pés dele, fazendo cócegas, até que ele a pegou e retornou aos estímulos e movimentos de nosso encontro anterior. Ver a alegria da mãe em ver seu filho no meio de toda aquela brincadeira, compartilhando as nossas palhaçadas nos seus próprios modos de comunicação, é algo difícil de descrever.

 

     Os reencontros não param por aí. W., paciente de meu plantão retrasado, continuava interno, mas dessa vez cheio de vida, vibrante. No dia em que plantoneei com ele, não pude tirá-lo da cama, por conta de sua então fragilidade. Mas nesse reencontro ele já estava saltitando e até dançando quadrilha com a Dªa. Fêhlizbela, que passou muito tempo com essa figurinha. Foi um aprendizado enorme ver as outras formas de interação que essa palhaça doutora construiu com W., que estava agora num contexto de abertura diferente do dia em que estava comigo. Essa situação dá oportunidade ao palhaço de aprender com os seus irmãos outros caminhos de “chegada” a uma criança.

 

     Dando continuidade, o penúltimo reencontro da tarde foi com F. Essa mocinha desenrolada, de aproximadamente três anos, cantou, dançou, e foi até a porta aliança do casamento matuto. Houve um momento marcante com ela na brinquedoteca que expressa bastante o que é ser um palhaço doutor. Ao entrar na sala, F. estava com a Drª. Tiquinho e o Dr. Teleco Teco quando barrou a minha entrada no local: eu entrei e não bati na porta, segundo ela. Porém, não era a porta da brinquedoteca que a garotinha falava, e sim a porta imaginária que ela havia criado com os meus irmãos palhaços e que eu, até então, não estava “vendo”. A partir do momento que consegui perceber aquela porta imaginária, do “toc toc” que me faltava, entrei no jogo de sair do meu espaço real e me deslocar para o espaço da imaginação daquela criança, de um objeto que estava na minha frente e que apenas só consegui visualizar abraçando um outro ponto de vista.

 

     Quando o nosso trem partiu, foi possível perceber um olhar pesaroso que F. lançava para nós por causa de nossa partida. Descemos todas aquelas rampas do HGE. Por algum jogo do destino, tive que voltar a uma enfermaria pediátrica para pegar um brinquedo que esquecemos. Assim que entrei no corredor, escutei vários gritos: F. estava sendo segurada por algumas enfermeiras que procuravam a sua veia. Aproximei-me de fininho e fiquei tentando distraí-la. Entre lágrimas, ela disse uma coisa que me deixou quase emudecido: “por que os palhaços foram embora (...)”. Não consegui entender se o tom era de afirmação ou interrogação. O fato é que, naquele instante, todas as palavras que parabenizam o nosso trabalho de palhaços doutores que ouvi até agora vieram de uma única vez pela fala de F., quando compreendi a falta que estávamos fazendo lá, especialmente naqueles minutos de dor. A mãe de F. disse: “olha aí, teve um que voltou”. Fiz várias tentativas de distraí-la, de início, sem sucesso, junto com a sua mãe, mas ainda assim conseguimos minimizar um pouco aquele choro, ao menos desviar o seu olhar que estava fixo na agulha.

 

     Por fim, o último reencontro se tornou também um primeiro encontro. É bem comum termos aqueles amigos que a vida acabou levando, mesmo que a nossa revelia. Foi nesse sentido que o Sorriso de Plantão cruzou as estradas do Dr. Letrinha Azogado e da Drª. Cotofante, amigxs que há mais de 12 anos não se esbarravam, não arengavam e nem brincavam mais juntos. Nesse plantão, nos reencontramos como palhaços doutores, como conhecidos que estavam se conhecendo novamente através de muitas doses de alegria.

 

PS.: deixo o agradecimento aos palhaços doutores e às palhaças doutoras que tão bem nos receberam nesse outro ponto de parada do Trem Sorriso de Plantão.

Dr. Letrinha Azogado

 

Sorriso De Plantão: Um Sentimento Que Muda Tudo heart