Relatos de um Palhaço: Dr. Letrinha Azogado IV

Relatos de um Palhaço: Dr. Letrinha Azogado IV
Dr. Letrinha Azogado está entrando em seu segunda ano de atuação no Sorriso de Plantão, na Equipe HGE.

     Boa noite gente!

     Hoje temos o prazer de poder dar continuidade ao nosso quadro "Relatos de um Palhaço", contando com a presença sempre assídua do nosso irmão, Dr. Letrinha Azogado, trazendo uma mensagem linda, nos contanto como foi todo o seu processo de entrada no projeto até o nascimento (ou libertação) do Letrinha Azogado. Esse relato foi especialmente feito para todos os nossos novos irmãos, e também para todos aqueles que nos acolhem como família.

     Se preparem pra mais um lindo relato.

 

"Eu, Palhaço Doutor!"

 

     Em meados de abril, de um modo um tanto inesperado, uma personagem que já existia em mim começou a ganhar uma forma e uma identidade. A prova teórica do Sorriso de Plantão do ano de 2015 pedia para que o candidato a Palhaço Doutor escrevesse um possível nome para a sua personagem. Foi assim que o nascimento Dr. Letrinha Azogado teve início: através da palavra. Como a minha formação acadêmica e pessoal estão bastante ligadas ao universo da leitura e da escrita, pensei em transferir essa característica, que contém variadas trajetórias da minha vida, para a minha personagem de Palhaço Doutor.

 

     Quando cheguei para a entrevista, e tive o meu primeiro contato com a Drª. Florzinha Jardins, nossa coordenadora Maria Rosa, percebi que o caminho optado para entrar no vagão do Trem Sorriso de Plantão foi o certo. Maria Rosa me perguntou se eu tinha conhecimento sobre as “classes pediátricas”, espaço (regulamento por Lei) destinado às crianças hospitalizadas na intenção de dar continuidade à formação escolar. Até então, eu não havia escutado essa expressão, fato que motivou a estudar sobre o assunto e a ressignificar a importância da leitura no contexto hospitalar da pediatria. Ter contato com esse assunto mostrou que a minha personagem de palhaço poderia seguir outros caminhos não pensados até o momento.

 

     Os dias de capacitação foram bem desafiadores. Uma vez aprovado no projeto, tinha a certeza de que agora teria que dar um jeito de me despedir de um medo de infância, compartilhado por muitas pessoas: a aversão ao palhaço. Sim, eu participei de todo um processo seletivo para ser um palhaço enquanto, por dentro, tremia de medo em esbarrar em um. Porém, antes de entrar no Sorriso de Plantão, fiz uma visita ao Hospital Geral do Estado (HGE) e outra visita ao Hospital Escola Dr. Hélvio Auto (HEHA/HDT) e vi que, aqueles palhaços e palhaças, especificamente, despertavam em mim alegria e vontade de fazer o outro feliz. Logo, nesses momentos, uma de minhas barreiras interiores começou a ser quebrada.

 

     Outra hora feliz desse período foi o momento de apresentação dos hospitais. Ver a maneira como cada representante falava com carinho do seu lugar de plantão era uma forma de expressar também que cada hospital possui características que o tornam especial para aqueles que nele atuam. As diferenças existem, juntos com as especificidades, fato que promove uma diversidade indispensável para a formação do palhaço doutor, se pensarmos o quanto aprendemos quando mudamos o trajeto de trem e visitamos um hospital diferente.

 

     As passagens de contextualização do trabalho do palhaço doutor, através da exibição do documentário do grupo Doutores da Alegria, fizeram-me compreender que a espontaneidade e o improviso são requisitos básicos para as nossas performances. Na tarde em que trabalhamos com brincadeiras possíveis no hospital de acordo com a faixa etária, enfatizou-se que a nossa atuação é caracterizada pela atmosfera do lúdico. Às vezes, quando as nossas atividades são associadas somente ao brincar, a atuação do palhaço doutor fica na esteira do “brincar por brincar”, sem uma função motivada, algo que é contrário aos nossos objetivos. O significado da palavra “lúdico” nos leva a pensar em um exercício previamente planejado, com a intenção de educar com leveza. Por exemplo, a contação de histórias pode ser uma atividade de improviso, mas, ainda assim, é preciso que seja um “improviso planejado”, que tenha um direcionamento que vise tocar no coração de um determinado público.

 

     As possibilidades de trabalho com a voz também me motivaram a refletir nos infinitos caminhos em que podemos produzir sentidos, tendo apenas o nosso corpo como principal recurso. Há muitas maneiras de suscitar o humor ou uma situação de riso através de sons, caretas ou gestos corporais que causam efeitos de estranhamento. Isso se torna ainda mais importante quando nos transportamos para o contexto hospitalar, um lugar que, às vezes, preza primordialmente pelo controle das emoções, por conta das variadas condições de estado não somente dos pacientes, como também dos funcionários e acompanhantes. Assim, é bom que nos “desinventemos”, como sugere Manoel de Barros no Livro das ignorãnças (1993): “Desinventar objetos/O pente, por exemplo/dar ao pente funções de não pentear”. É preciso que entremos nas reentrâncias de pequenos gestos usuais, desautomatizando-os de nossas rotinas, pincelando-os com novas cores.

 

     O momento dedicado à formação do clown foi uma das etapas mais complexas desse ciclo de capacitação, pois era a hora de dar uma forma física às nossas personagens, nomeá-las e colocá-las num vestuário, vontades (reconfigurando-se em atitudes) que até agora habitavam apenas no plano do desejo, da imaginação. Um passo indispensável para a formação do meu palhaço doutor, o Letrinha Azogado, foi ouvir as experiências dos integrantes mais antigos do Sorriso de Plantão. Entendi que, na composição de nossas personagens, o que mais importava não era criar um “novo eu”, e sim extrair uma face já existente em algum canto do meu interior. Essa face, geralmente escondida, somente teria uma vida possível no universo do ficcional, justamente por não fazer parte, em tempo integral, da identidade que assumimos quando estamos “fora do vagão”. Construir a personagem de palhaço doutor é ser capaz de encontrar um humor que faça sentido dentro de uma ridicularização, recuperar uma memória afetiva que, quando compartilhada, poderá ser vivida nos sorrisos de outras pessoas.

 

     A escolha da maquiagem do Dr. Letrinha Azogado foi o passo mais difícil na composição do vestuário. A razão: a referência inevitável ao filme It – uma obra prima do medo, de 1990, adaptação fílmica de Tommy Lee Wallace, baseado no romance de Stephen King (pausa para: podem mangar de mim!). Na capacitação, descobri uma compreensão equivocada que eu tinha da imagem do palhaço doutor quando os palhaços mais antigos explicaram que deveríamos usar uma maquiagem leve, preferencialmente com as cores branco e preto. Então, percebi que esse traço era essencial também para a dissociação de uma imagem circense, fator que poderia gerar um certo distanciamento entre a criança e o palhaço. Como o próprio nome da minha personagem diz, sou “azogado”. Se tem uma coisa que eu não sei fazer é “make”, nem quando é pra me produzir pro rolezinho do final de semana. Sendo assim, enquanto os meus irmãos e irmãs palhaços se dedicavam à maquiagem, eu me concentrava naquilo que poderia estar no jaleco.

 

     A confecção do jaleco é algo muito especial, pois é como se você estivesse construindo um outro corpo (que acumula a função de proteção no ambiente hospitalar). O Letrinha Azogado tem uma referência direta ao Modesto Máximo, personagem do livro infantil Os fantásticos livros voadores de Modesto Máximo, do escritor norte-americano William Joyce, editado no Brasil em 2012. Algumas ilustrações dessa narrativa foram transportadas para o meu jaleco, uma vez que a história da minha personagem também se reportava à atmosfera da relação do leitor com o seu livro, expressando um olhar delicado sobre a importância da leitura na formação humana. Logo, aquele colorido que deveria estar no meu rosto foi transferido para o meu jaleco.

 

     O chapéu, como acessório complementar, funcionou melhor do que eu imaginava, posto que passou a ideia do bobo corte, dialogando também com a imagem de sujeito errante de Modesto Máximo, de um sujeito que aprende com os seus tropeços e se encontra consigo mesmo quando redimensiona a sua relação com a palavra. O barulho dos pequenos sinos do meu chapéu fizeram mais sucesso do que eu pressupus, principalmente na Unidade de Terapia Intensiva (U.T.I.), tendo em as condições de mobilidade dos pacientes. A composição do vestuário pode ser pensada como um jogo de complementaridades: o que está em falta em algum espaço pode fazer mais sentido em outro lugar.

 

     Por fim, fazer a história do Letrinha Azogado foi muito prazeroso, visto que era como se eu estivesse criando uma vida que eu não tive e que agora poderia ter no plano dessa interlocução entre o ficcional e o “real”. As minhas experiências de leitura foram misturadas com o enredo do livro que mencionei, sendo também tocadas por esse curto período de capacitação, que serviu como prelúdio do que poderia acontecer nas minhas futuras tardes de plantão. Vale lembrar também que a história do palhaço ou da palhaça precisa se manter viva dentro de cada um e, principalmente, dentro do hospital, já que ela é um meio de configuração de nossas identidades risíveis. Termino esse breve texto com alguns versos de Camilo Castelo Branco, que mostram os comportamentos do livro a depender da forma que o tratamos:

 

Um livro aberto, é um cérebro que fala;

Fechado, um amigo que espera

Esquecido, uma alma que perdoa,

Destruído, um coração que chora.

 

    

     Música, sons, corpo e literatura são mais do que repositórios de palavras: são lugares de habitação de memórias, de sentimentos, de amor. Para nós, enquanto palhaços doutores e palhaças doutoras, precisamos ouvir o que cada uma dessas instâncias falam para nós, parar um momento, ficar absorto num gesto de interrupção que nos movimente para refletir nas fissuras que um livro aberto (ou qualquer discurso que se utilize a palavra, seja escrita, visual ou sonora) pode ter, nos efeitos de sentido que deslocam num olhar triste, monocromático, para as cores que a terapia do riso se pinta, se traveste.

 

     Aos novos irmãos e irmãs, que sobem agora no nosso trem, imaginem que não somente as suas tardes de sábado irão se modificar: ser palhaço doutor é um estado contínuo que atravessa todos os dias da semana. No entanto, isso não significa que somos alegres 24 horas por dia, e sim que teremos, no mínimo, uma pessoa a mais para nos fazer feliz quando não estamos felizes.

Dr. Letrinha Azogado

 

Sorriso de Plantão: Um Sentimento Que Não Pode Parar heart