Relatos de um Palhaço: Dr. Letrinha Azogado V
Boa noite meu povo!
Hoje voltamos com mais um "Relatos de um Palhaço", com o retorno do nosso irmão, Dr. Letrinha Azogado, nos contando sobre um momento muito triste que eles e os nossos irmãos do HGE passaram recentemente. Com toda a certeza, J.B agora é uma estrelinha lá no céu, que olha por nós, e nós ficamos felizes por termos feito parte da vida dele, mesmo que de uma forma tão simples.
Fique agora com esse belo relato!
“Desencontro”
Ele teve a sensação de ser. Não poderia explicar, tão profundo, nítido e largo que era. A sensação de ser uma visão aguda, calma e instantânea de ser o próprio representante da vida e da morte. Então, ele não quis dormir, para não perder a sensação da vida.
“Viver”, de Clarice Lispector
Foi num desses acasos da vida que conheci J.B., garotinho de 9 anos, no início de setembro, na pediatria do Hospital Geral do Estado. Assim que desembarquei do Trem do Sorriso de Plantão, reconheci aquele olhar. Vasculhei fundo na memória até recuperar a imagem que tinha guardado dele. J.B. estava no Hospital Hélvio Auto (HDT), na festa de São João de 2015. Lembrei dele por conta de uma foto muito bonita, que sempre me tocou, que ele tinha com a Dra. Patassaura.
J.B. me conquistou rapidamente por conta da intensidade do seu olhar: tímido, carinhoso e, ao mesmo tempo, frágil. E assim, fomos construindo uma amizade, que driblou os resmungos e as dores causadas pela hepatopatia que o acometia. Um sábado antes da festa do Dia das Crianças, perguntei qual presente ele desejaria ganhar. A resposta (rápida e vibrante) foi um “carro”. Separei uma caçamba grande e bonita para J.B. No dia da festa, colocamos nele uma máscara do Homem-Aranha e ele me pediu um boneco do super-herói. Quando eu consegui o novo brinquedo para ele, J.B. correu para o quarto e escondeu o presente, como se quisesse ter certeza de que ninguém iria tirar o seu Homem-Aranha. Perguntei a ele se havia brinquedos em sua casa e a resposta foi “não”.
Depois desse momento, fiquei com o coração apertado. Pensar que uma criança somente ganhou o seu primeiro brinquedo ao ser internado é algo que dói bastante, mas, por outro lado, trouxe alegria para aquela tarde, já que vi que a nossa festa do Dia das Crianças contribuiu para devolver uma infância que tinha escapado da vida daquele garoto. Durante todo o momento da festa, sempre fazia o possível para ficar perto dele e atender os seus pedidos. Mesmo quando havia algum palhaço doutor por perto, ele olhava, algumas vezes, primeiro pra mim, com uma expressão de chamamento que transmitia confiança e que produzia, dentro de mim, um desejo imenso de poder ajudá-lo mais.
No plantão seguinte, J.B. me pediu uma moto de brinquedo. Eu disse que não tinha uma moto ali e que ele deveria esperar duas semanas, pois eu iria viajar. Pensei em comprar a moto e enviá-la através de um outro palhaço doutor do HGE, porém, desisti da ideia, visto que queria eu mesmo entregar o novo presente a ele e ver o seu olhar ao recebe-lo. Infelizmente, por circunstâncias que vão além da minha compreensão, nós nos desencontramos. J.B. se transformou em uma estrela antes do nosso próximo encontro e nos separamos antes das novas brincadeiras que poderiam surgir com a moto.
Um vazio estranho se espalhou no Dr. Letrinha Azogado, pois ele não teve a oportunidade de se despedir da forma que desejava e nem de ver o sorriso de J.B. ao ter o pedido da moto atendido. Mais estranho ainda é imaginar subir no Trem, voltar ao HGE e não esbarrar com J.B. que estava sempre nos esperando fora da enfermaria 3. Uma outra parte do meu palhaço doutor fica contente pelas horas que brincamos de pega-varetas e de Cai Não Cai. Uma outra parte do meu palhaço fica grato por ter visto tanta vontade de viver. E uma outra parte do meu outro palhaço, a que está ferida por conta dessa abrupta partida, apoia-se nas partes que J.B. foi luz. As dores e o mal estar do nosso garoto, nos momentos de plantão, incomodavam-no, porém, ele queria estar o tempo todo conosco, nem que fosse sentado no banco, lado a lado, na presença de um silêncio que se enchia de amor, cuidado e esperança.
O desejo de entregar aquela moto irá morar no Dr. Letrinha Azogado para sempre. E ele espera que, onde estiver, J.B. se lembre que esse brinquedo será uma lembrança física e espiritual daquelas lindas tardes de sábado. A luz cativante do seu olhar, a simplicidade dos seus gestos e a força da sua luta, sem dúvidas, resplandecerão nas nossas crianças que continuam persistentes na luta. Como uma estrela agora no céu, o calor dessa sua outra forma de vida viverá naqueles que tocaram o afago da sua companhia. Fique em paz, meu pequeno e doce amigo, e muito obrigado por fazer parte da minha jornada.
Dr. Letrinha Azogado
Sorriso de Plantão: Um Sentimento Que Não Pode Parar